09 agosto 2011

Dia 21

Estavámos os dois sentados na varanda dos fundos. Fazia tempo que não tínhamos um tempo pra nós, e ali revolvemos ficar lendo aquele livro de contos, escolhido na sorte de olhos vendados no sebo recém descoberto perto de casa. Ele continuou lendo, mas minha mente ainda trabalhava neste trecho:

"É que cansei. Fartei-me. Vinte. Mais de vinte anos a dividir, viver, absorver desabafos, e a conviver e sobreviver... com desabafos. Teus desabafos. Tenho sido companheiro, amigo, irmão, padre, amante, analista, confidente. Um tudo de pouco. E de muito também. Logicamente levando em conta minhas limitações. Não rias, estou falando sério. No ínicio havia o prazer do desconhecido, a atração pela intimidade não revelada. Eras um tonel de segredos inebriantes. Embriagava-me a desvendar os túneis da tua mente. Os labirintos. Aonde iam dar."*

Alguns diriam que era uma mensagem subliminar dele pra mim, que o livro não fora escolhido ao acaso, que ele espiara pelas brechas de meus dedos e escolhera este livro de contos para mostrar-me como se sentia. Mas eu sabia que ele não era assim. Subliminar não era com ele.
Olhei para os lados, encostei minha cabeça em seu ombro. Ele lia e eu continuava a repetir este trecho em minha cabeça. Fazia sentido. Eu poderia dizer que ele voltara ao passado só pra escrever aquele livro para que neste momento, sentados na varanda, ele me mostrasse o quão cansado estava de apenas doar-se pra mim, de ser tudo pra mim, de apenas ser consumido e nunca preenchido.
Meus olhos encheram-se de lágrimas ao perceber que era assim que estavámos. Que era por minhas faltas e ausências que estavámos tão longe um do outro. Que era por meu egoísmo e medo de estar só, e o medo de estar junto também. Mas por tanto tempo ele estava ali, ao meu lado. Cansado, mas continuava ao meu lado. Carinhoso sempre. Risonho sempre.
Ele continuava a ler sem perceber que eu chorava em silêncio no seu ombro. Ou talvez percebe-se e estava apenas respeitando meu tempo de reflexão. Era assim desde o começo, sempre sabia o que fazer e o que não fazer a respeito de mim. Conhecia-me melhor do que eu mesma.
E ali, encostada em seu ombro lembrei de uma frase do Caio Fernando Abreu: “Deitada no ombro dele, ela via seu rosto muito próximo. Esse era o sonho, nada mais”.
E percebendo meu silêncio, ele me olhou, colocou o livro do lado e segurou minhas mãos. Esperaria o tempo que fosse, mas não perguntaria o motivo de meu choro. Apenas esperaria eu falar. E o que eu falaria?
Abracei-o forte, senti seu cheiro. Muitas coisas passaram por minha cabeça, muitos erros que cometi, minhas ausências... Talvez, reconhecer aquilo tudo já era um passo. E era apenas dele que eu precisava. Esqueceria o limite do tempo, do espaço, meus medos e egoísmo. Era apenas dele que eu precisava e nada mais.


*Dia 21, pág 43 - O Clube dos Feios e outras Histórias Extraordinárias - Carlos Trigueiro.


6 comentários:

Nathy. disse...

Eu, que sempre fui a que não esteve presente, a que não se doou por inteiro, não notou as mudanças de humor, não lembrou do aniversário, não isso e não aquilo.. Eu, nessa história que escrevestes, sou você.

É por isso que a maior parte do tempo nós estamos completando o pensamento da outra?

Lindo.
Mesmo.

Daniel Lira disse...

Sempre vou estar aqui para você sua linda! Hahaha, como sempre preferindo lhe ler s ler Paul Rabbit xD

Juliana Cimeno disse...

Já falei do lance sobre honestidade na escrita? Vejo cada vez mais isso desde que você voltou praí.


Muito bonito.

Manollo disse...

Para qualquer relação dar certo deve haver complementariedade, Você foi perfeita em demonstrar isso, pois é nos defeitos que as pessoas se completam!!!

Quero alguém que ame meus defeitos, quero amar os defeitos dela também...

Parabéns pelo post e pelo blog!

Puma Azul disse...

Que lindo.

É como a história do pássaro azul, a gente está tão empenhada em encontrar a felicidade que não percebe que ela está ali, do nosso lado. Aí, alguém que nem existe mais, escreve uma chave pra que um dia vc a encontre. Pra mim, coincidências como essa são mensagens de Deus.

Esquece o medo, a vida vai doer de qualquer jeito, quer vc se arrisque ou não. Escolhe ser feliz...

E segue tecendo chaves, pra que um dia, mesmo que vc não esteja mais por aqui, elas ajudem outros corações a desabrochar. Essa é a beleza de escrever.

Gabriely Tavares disse...

Nossa que texto lindo...