02 outubro 2011

Sangue nos olhos


"Não sei onde pus as chaves da porta da frente."
"Será se estão no carro?"
"Já sei! Na bolsa!"
"Não, não estão."
O poster do seu filme favorito despregou da parede. As roupas que você joga em cima da cama são dobradas dia-sim-dia-não por uma estranha a quem você confia o seu lar pra que ela o organize pra você.
Num canto do teu quarto a parede é amarelada por causa do suor de todas as costas que se encostaram ali e ficaram por horas vendo a vida passar na frente do computador. E só acumula. O suor. O amarelo.
"Depois eu pinto a parede."
"Depois eu colo o poster."
"Depois eu procuro as chaves."
E metade de tudo em volta de ti fica pra depois. E teu depois é data que nunca chega.
O que chega são as teias de aranha sob teu poster.
O que chega é uma parede ainda mais amarelada.
O que chega é a cegueira nos olhos do teu cachorro, já velho, no qual você alimenta todos os dias mas não repara. Levar comida e água é tão automático que os olhos dele poderiam estar cheios de sangue que você não notaria a menos que jorrasse, o sangue.
E um dia jorrou.
Jorrou o sangue, as teias, o amarelo. E junto deles, culpa.
Culpa do teu depois ser uma data indeterminada. Você passa mais tempo listando as coisas que tem pra fazer do que fazendo e o tempo passa. E então você resolve agir quando já é tarde demais.
Tarde demais porque a parede já mofou, o poster se deteriorou, as chaves já não existem mais e o sangue nos olhos do teu cachorro escorreu mais do que devia. E deu lugar a um par de olhos opacos, brancos de cegueira. Um cão sem olhos.
Só o que ficou com o depois foram lágrimas e culpa pela negligência.
Ambas suas.

4 comentários:

Ágda Santos disse...

Assusta quando vejo o que aconteceu quando estava listando as coisas pra fazer... Assusta muito.
Mas eu tenho que organizar o que vou fazer depois de escrever aqui... Volto depois pra terminar, tá?

Unknown disse...

Nossa tá de parabéns! Gostei muito do texto. (y)

Ágda Santos disse...

"Deixa pra depois
O que já não precisa esperar
E tudo o que não deu pra consertar
Por culpa do depois
Não tem jeito não
A gente sempre espera piorar
A gente sempre deixa de cuidar
Do que ja tem na mão
MAS É SEM QUERER
SEM QUERER
(...)
E diz que só queria descansar
De quem a gente mesmo escolheu ser
Mas é sempre sem querer"

Então, taí. Taí que também me encontro no mesmo balaio. O ano acaba e nem sei o que é a coisa certa a se fazer. Mas é sem querer. Por que a gente tem que crescer, afinal?

Eu disse...

"O que chega é a cegueira nos olhos do teu cachorro, já velho, no qual você alimenta todos os dias mas não repara. Levar comida e água é tão automático que os olhos dele poderiam estar cheios de sangue que você não notaria a menos que jorrasse, o sangue.
E um dia jorrou.
Jorrou o sangue, as teias, o amarelo. E junto deles, culpa."
#cry